A fibrose cística é uma doença genética que afeta diversos sistemas do organismo humano e cursa com progressiva perda de função pulmonar (1). Pessoas acometidas por essa doença tem uma significativa redução da qualidade e expectativa de vida, e sofrem com a ocorrência de sintomas crônicos e exacerbações respiratórias com internações hospitalares, além de dependerem de uma rotina exaustiva de tratamentos diários.
No passado era uma doença quase exclusiva da população pediátrica, mas em países desenvolvidos mais da metade da população acometida na atualidade é adulta (2). Essa não é a realidade brasileira, em que cerca de 75% dos indivíduos têm menos de 18 anos (3). E mais ainda, a expectativa de vida em nosso meio é muito inferior à descrita em outros países, pois a idade média de óbito em nosso meio está ao redor dos 20 anos de idade (3, 4).
Por mais que o país tenha alcançado avanços no diagnóstico e tratamento da doença, esse cenário não se modificará se os novos medicamentos, que atuam no defeito básico da doença, não forem incorporados ao tratamento desses indivíduos. Um pequeno passo foi dado recentemente, com a publicação do novo Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para a doença, que traz um grande detalhamento de aspectos essenciais para seu manejo e incorpora um desses novos medicamentos, denominado Kalydeco (Ivacaftor), ao rol de medicamentos do SUS (5). No entanto, esse medicamento atende a uma parcela muito reduzida de pessoas com FC, pois é indicado apenas para portadores de variantes de regulação (gating), o que representa um universo de cerca de 60 pessoas no País. No entanto, o medicamento Trikafta (associação de Elexacaftor, Tezacaftor e Ivacaftor), é efetivo para uma diversidade muito maior de indivíduos, podendo ser utilizado em indivíduos com uma ou mais cópias da variante genética F508del (6, 7), a mais frequente em t do o mundo e no Brasil.
No parecer técnico-científico emitido em setembro de 2021 (8), o posicionamento de Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística (GBEFC) descreve de forma clara e detalhada os resultados dos estudos clínicos do uso desse medicamento em pessoas com fibrose cística, de tal modo que nosso posicionamento é de inteiro acordo com tal documento.
No entanto, gostaríamos de acrescentar novas evidências e opiniões que suportam o uso do medicamento para pessoas com fibrose cística com genética responsiva (portadoras de pelo menos uma cópia da variante F508del), em qualquer cenário, de modo independente da gravidade da doença (valores de função pulmonar ou achados de imagem):
1. O tratamento oferecido atualmente no SUS não é suficiente: se o tratamento disponível fosse efetivo, não estaríamos vendo pacientes aderentes às terapias e em seguimento em Centros de Referência Especializada morrerem precocemente, muitas vezes antes de atingirem a primeira década de vida, e isso infelizmente é a realidade do dia a dia dos profissionais de saúde que lidam com a doença;
2. A doença tem caráter progressivo e irreversível: as lesões pulmonares (bronquiectasias) ocorrem de forma progressiva e tornam-se irreversíveis depois de um determinado estágio (9), o que significa que todos os esforça e recursos para minimizar o risco de progressão da doença devem ser adotados, não sendo recomendado aguardar um certo estágio de comprometimento para se lançar mão de uma terapia potencialmente transformadora;
3. O medicamento é de impacto clínico inquestionável e tem perfil de segurança bastante adequado, mesmo tendo tempo de avaliação ainda relativamente curto: a magnitude dos efeitos em desfechos clínicos e funcionais observada nos estudos randomizados e mesmo em ensaios de vida real (6, 7, 10-14) supera o que foi observado em TODOS os estudos com os medicamentos atualmente disponíveis no SUS (15-17); tanto no que concerne aos valores de melhora da função pulmonar, como na melhora de lesões de seios paranasais e pulmonares, redução de exacerbações, função pancreática, melhora da qualidade de vida, redução de hospitalizações, melhora nutricional. Há ainda evidências anedóticas de que o uso em gestantes(!!) é seguro e pode prevenir doença nos bebês acometidos pela doença (18), revertendo inclusive a ocorrência do íleo meconial, que é uma manifestação grave e potencialmente fatal que ocorre após o nascimento (19);
4. O medicamento foi aprovado na ANVISA em março de 2022: sendo possível verificar o fato no site da agência (20). Vale ressaltar um trecho do texto da aprovação” os estudos clínicos realizados demonstraram que o efeito de ELX/TEZ/IVA em um único alelo F508del é suficiente para resultar em benefícios clínicos sem precedentes, independentemente da mutação no segundo alelo. O perfil de segurança de ELX/TEZ/IVA foi adequadamente caracterizado.”
5. O tratamento é efetivo e seguro mesmo em fases avançadas da doença: estudo francês de Burgel e colaboradores, publicado em 2021 (21), avaliou 245 pacientes com doença avançada (função pulmonar média de 29% do predito) que receberam o medicamento Trikafta. O ganho médio de função pulmonar foi de 15%, com ganho de peso médio de 4kg. O mais impressionante, entretanto, foi que 50% dos pacientes que usavam oxigênio deixaram de usálo, 30% dos pacientes que faziam uso de ventilação não-invasiva conseguiram deixar de usála, 50% dos pacientes com gastrostomia puderam retirá-la. Além disso, 65 pacientes estavam listados para transplante ou aguardando avaliação, e no seguimento apenas dois deles foram transplantados (cinco e 11 dias após iniciarem o tratamento com o medicamento), dois continuam em lista aguardando o transplante, mas 61 não preenchem mais os critérios para transplante pulmonar (22).
Diante de todas as evidências científicas, de exemplos de vida real e da experiência clínica de lidar com pessoas com fibrose cística há mais de 30 anos, nosso posicionamento é inteiramente favorável à prescrição do medicamento para pessoas com elegibilidade ao medicamento (genética), sem restrições determinadas por estágio da doença. Acreditamos, inclusive, que a tendência para os próximos anos será a gradativa redução da idade mínima de início de tratamento, dado o caráter progressivo e frequentemente precoce de acometimento dos indivíduos.
Luiz Vicente Ribeiro Ferreira da Silva Filho
Coordenador do Depto. de Pneumopediatria da SBPT
Marcelo Bicalho de Fuccio
Coordenador do Depto. de Fibrose Cística da SBPT
Referências bibliográficas:
1. Ratjen F, Bell SC, Rowe SM, Goss CH, Quittner AL, Bush A. Cystic fibrosis. Nat Rev Dis Primers. 2015;1:15010.
2. Bell SC, Mall MA, Gutierrez H, Macek M, Madge S, Davies JC, et al. The future of cystic fibrosis care: a global perspective. Lancet Respir Med. 2020;8(1):65-124.
3. da Silva Filho L, Zampoli M, Cohen-Cymberknoh M, Kabra SK. Cystic fibrosis in low and middleincome countries (LMIC): A view from four different regions of the world. Paediatr Respir Rev. 2021;38:37-44.
4. Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística (GBEFC). Brazilian Cystic Fibrosis Registry Report. 2019, 2021. Disponível em: http://www.gbefc.org.br/ckfinder/userfiles/files/REBRAFC_2019.pdf, Acessado em: 07/11/2022.
5. CONITEC. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas – Fibrose Cística, 2021. Disponível em: https://www.gov.br/conitec/pt-br/midias/protocolos/20211230_portal-portaria-conjunta-no25_pcdt_fibrose-cistica.pdf. Acessado em 07/11/2022.
6. Heijerman HGM, McKone EF, Downey DG, Van Braeckel E, Rowe SM, Tullis E, et al. Efficacy and safety of the elexacaftor plus tezacaftor plus ivacaftor combination regimen in people with cystic fibrosis homozygous for the F508del mutation: a double-blind, randomised, phase 3 trial. Lancet. 2019;394(10212):1940-8.
7. Middleton PG, Mall MA, Drevinek P, Lands LC, McKone EF, Polineni D, et al. ElexacaftorTezacaftor-Ivacaftor for Cystic Fibrosis with a Single Phe508del Allele. N Engl J Med. 2019;381(19):1809-19.
8. Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística (GBEFC). Parecer técnico-científico sobre Elexacaftor, Tezacaftor, Ivacaftor (Trikafta®/Kaftrio®), 2021. Disponível em: http://portalgbefc.org.br/ckfinder/userfiles/files/GBEFC_PTC_TRIKAFTA.pdf. Acessado em: 07/11/2022.
9. Chang AB, Bush A, Grimwood K. Bronchiectasis in children: diagnosis and treatment. Lancet. 2018;392(10150):866-79.
10. Regard L, Martin C, Burnet E, Da Silva J, Burgel PR. CFTR Modulators in People with Cystic Fibrosis: Real-World Evidence in France. Cells. 2022;11(11).
11. King JA, Nichols AL, Bentley S, Carr SB, Davies JC. An Update on CFTR Modulators as New Therapies for Cystic Fibrosis. Paediatr Drugs. 2022;24(4):321-33.
12. Stylemans D, Darquenne C, Schuermans D, Verbanck S, Vanderhelst E. Peripheral lung effect of elexacaftor/tezacaftor/ivacaftor in adult cystic fibrosis. J Cyst Fibros. 2022;21(1):160-3.
13. Fajac I, Daines C, Durieu I, Goralski JL, Heijerman H, Knoop C, et al. Non-respiratory health-related quality of life in people with cystic fibrosis receiving elexacaftor/tezacaftor/ivacaftor. J Cyst Fibros. 2022.
14. Mall MA, Brugha R, Gartner S, Legg J, Moeller A, Mondejar-Lopez P, et al. Efficacy and Safety of Elexacaftor/Tezacaftor/Ivacaftor in Children 6 Through 11 Years of Age with Cystic Fibrosis Heterozygous for F508del and a Minimal Function Mutation: A Phase 3B, Randomized, PlaceboControlled Study. Am J Respir Crit Care Med. 2022.
15. Fuchs HJ, Borowitz DS, Christiansen DH, Morris EM, Nash ML, Ramsey BW, et al. Effect of aerosolized recombinant human DNase on exacerbations of respiratory symptoms and on pulmonary function in patients with cystic fibrosis. The Pulmozyme Study Group. N Engl J Med. 1994;331(10):637-42.
16. Saiman L, Marshall BC, Mayer-Hamblett N, Burns JL, Quittner AL, Cibene DA, et al. Azithromycin in patients with cystic fibrosis chronically infected with Pseudomonas aeruginosa: a randomized controlled trial. Jama. 2003;290(13):1749-56.
17. Ramsey BW, Pepe MS, Quan JM, Otto KL, Montgomery AB, Williams-Warren J, et al. Intermittent administration of inhaled tobramycin in patients with cystic fibrosis. Cystic Fibrosis Inhaled Tobramycin Study Group. N Engl J Med. 1999;340(1):23-30.
18. Taylor-Cousar JL, Jain R. Maternal and fetal outcomes following elexacaftor-tezacaftor-ivacaftor use during pregnancy and lactation. J Cyst Fibros. 2021;20(3):402-6.
19. Szentpetery S, Foil K, Hendrix S, Gray S, Mingora C, Head B, et al. A case report of CFTR modulator administration via carrier mother to treat meconium ileus in a F508del homozygous fetus. J Cyst Fibros. 2022;21(4):721-4.
20. ANVISA. Aprovação de Trikafta (Elexacaftor-Tezacaftor-Ivacaftor), 2022. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/medicamentos/novos-medicamentos-eindicacoes/trikafta-r-elexacaftor-tezacaftor-ivacaftor-novo-registro. Acessado em 07/11/2022.
21. Burgel P-R, Durieu I, Chiron R, Ramel S, Danner-Boucher I, Prevotat A, et al. Rapid Improvement after Starting Elexacaftor–Tezacaftor–Ivacaftor in Patients with Cystic Fibrosis and Advanced Pulmonary Disease. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine. 2021;204(1):64-73.
22. Martin C, Reynaud-Gaubert M, Hamidfar R, Durieu I, Murris-Espin M, Danner-Boucher I, et al. Sustained effectiveness of elexacaftor-tezacaftor-ivacaftor in lung transplant candidates with cystic fibrosis. J Cyst Fibros. 2022;21(3):489-96.
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